terça-feira, 6 de outubro de 2009

Pacto em favor da paz


Diretora de danças étnicas dissemina movimento que prega entendimento entre homens e mulheres

Por Déa Januzzi, para o Caderno Bem Viver do jornal O Estado de Minas de 10/05/09

Amyra El Khalili, de 43 anos, nasceu em Mogi das Cruzes (SP), mas é de origem palestina. Profissional de danças étnicas, diretora da Cia El Khalili Arabian Dances, com mais de duas décadas de pesquisas sobre ritmos árabes e brasileiros, tem trabalhos premiados no Brasil e no exterior. É idealizadora da oficina Dança pela água em missão de paz, realizada com mulheres de diversas comunidades brasileiras. Foi fundadora do Movimento mulheres pela paz e indicada para as premiações “1.000 mulheres para o Prêmio Nobel da Paz” e “Prêmio Bertha Lutz 2007”. Em entrevista ao caderno Bem Viver, ela fala de sua trajetória de vida e de sua principal prioridade – trabalhar a autoestima feminina.“Tanto a exterior quanto a interior, para que as mulheres conquistem o poder. Para nós, esse trabalho é um ritual traduzido em dança. Seja para o mercado de trabalho, para o empreendedorismo, a economia, o amor, a família, o empoderamento de mulheres é a nossa meta”, diz.

Você é uma profissional eclética, pois, além de dançarina, também é economista e ambientalista. Como tudo se encaixa em sua história de vida?
Tornei-me economista, porque como artista não conseguia sobreviver dignamente. Na minha cabeça de menina, pensava que se conseguisse convencer que a arte é atitude, muito poderia se ganhar social e economicamente com atividades culturais e artísticas. No meu entendimento, conseguiria financiar as atividades de dança, cinema, teatro, literatura, entre outras. Sempre fui artista, não somente como dançarina étnica, mas fiz cinema, teatro, cenografia, artes plásticas. Sou também poeta e escritora. Fui, desde jovem, muito respeitada por exercer entre os grupos heterogêneos uma liderança de bom senso, profissional e de justiça. Mas, sobretudo, pelo compromisso com o trabalho voluntário. Dona Elisa, minha mãe, é enfermeira-sanitarista e meu pai era palestino refugiado, mascate, como todo beduíno. Filha de pequenos produtores rurais, criada em orfanato, minha mãe ensinou-me a trabalhar desde os 9 anos. Quando pequenina, fui para uma oficina de costura de fundo de quintal. Com apenas 12 anos já era secretária num consultório médico. Aos 16, comecei minha carreira como operadora de commodities numa corretora de mercadorias, vendendo arroz e feijão, para depois tornar-me secretária temporária e substituta de várias secretárias da bolsa de mercadorias e de futuros, até chegar ao status de broker (corretora) nos mercados financeiros e, finalmente, ser professora dessa coisa complexa, que são os mercados futuros e de commodities. O trabalho não me matou, nem fez de mim uma criança complexada. Sempre exerci a atividade artística e cultural paralelamente às profissionais básicas de sobrevivência. Aliás, como faz a maioria dos artistas pobres para se sustentarem neste país. Trabalhei e estudei a vida inteira, cuidei de meus irmãos, ajudei a criá-los e educá-los com a mesma responsabilidade materna.

Onde entra a dança na sua vida?
Desde que fiz uma carreira meteórica nos mercados financeiros, entendi que não poderia jamais esquecer que tenho útero. Não deveria abandonar minha feminilidade, pois estava no meio de um mercado patriarcal, em que predomina a voz de comando eminentemente masculina. O respeito do mundo financeiro me custou alto e muito caro. Paguei com a vida pessoal, tendo que manter um comportamento severo e uma disciplina militar, até que conseguisse me libertar das pressões e assumir uma posição proativa, defendendo a importância do reconhecimento e espaço de poder das mulheres num ambiente machista. A dança é esse resgate. Um eixo de equilíbrio. Trata-se de um pacto tribal de mulheres entre mulheres e para mulheres.

O que é o Movimento mulheres pela paz?
É um movimento da mística feminina – essência que o homem também tem –, que nasceu em 8 de março de 2002. Com a participação de homens e mulheres pela paz, formamos uma frente representativa de ação proativa com o Move On na América Latina e a coalizão liderada pelo Bispo Desmond Tutu, da África do Sul. Uma mobilização com a participação de ativistas de 142 países em vigília contra a invasão do Iraque pelos Estados Unidos. Um dia antes da invasão, estávamos conectados com velas acesas e orações, pedindo paz no mundo. E, depois, via internet, nos juntamos ao Movimento mulheres pela paz dos EUa, apoiando a petição on line para a retirada das tropas estadunidenses e de seus aliados do Iraque. O Codepink contabilizou 100 mil assinaturas. Junto com uma carta protesto, elas foram entregues na ONU, em Nova Iorque, em março de 2006. Esse movimento nasceu de uma atitude de mulheres palestinas, judias e brasileiras, depois de várias cisões em nossos grupos pacifistas. Nasceu no momento em que os homens não conseguiam sair da mesma retórica discursiva. A cada guerra ou conflito, quando as pessoas surtarem, perderem a razão na cegueira odiosa, mandaremos e-mails com receitas de doces árabes, comida judaica, baiana, goiana. Convidaremos para uma dança coletiva, um poema, um cinema, uma troca de carinhos e boas palavras. Um gesto suficiente para serenar a mente. Nenhum movimento, porém, se consolida apenas com motes. Essa consolidação só se dá quando seus líderes e integrantes assumem efetivamente a causa, carregam suas bandeiras, assumem a exposição pública com todos os riscos. O nosso "A" da palavra paz ! é um a de @ (arroba), código internauta. Precisávamos agir o mais rápido possível, com mensagens positivas, desmontando fluxos de informações com mensagens, por exemplo, racistas, preconceituosas, negativas, sites de pedofilia, além de centenas de cyberações em defesa da preservação e conservação ambiental. O movimento foi crescendo informalmente pela internet, sem constituição jurídica e organização engessada, mas transversal, como a palavra movimento. Nas regiões onde atuamos, trabalhamos também, fora da internet, o movimento corporal: a dança pela água em missão de paz.

Qual o papel das mulheres na luta pela paz?
Pensamos sempre na mulher como um ser que dá vida a outros seres, e é responsável por carregar no ventre essas vidas, bem como educar, lavar, passar e cozinhar, além, é claro, de trabalhar fora de casa. Há as que trabalham dentro de casa também, nessa dupla jornada, e ainda convivem com os conflitos de identidade do parceiro, que, muitas vezes, não consegue acompanhar a evolução das mulheres, como profissional remunerada alcançando cargos e salários, como mulher independente financeiramente, e que pode, a qualquer momento, se livrar do paradigma de casamentos por dependência ou imposições sociais. As mulheres também têm tido um papel relevante nas questões ambientais, quando defendem o direito de água para todos. Que é na verdade a defesa do direito à vida. As mulheres têm se movimentado mais rápido que os homens nas questões sociohumanitárias e nas mobilizações ambientais. Tem sido mais fácil sensibilizar as mulheres para a preservação e conservação ambiental devido à própria condição biológica, como gestora da vida, portadora de útero. Entendemos, porém, que a mulher precisa também caminhar ao lado do homem, formando a família. As mulheres devem assumir sua condição de guardiãs das florestas, dos rios, da natureza, do meio ambiente, uma vez que, no dia a dia com as tarefas domésticas, são também as que sofrem com a falta de água, de energia, de alimentos. As mulheres estão revolucionando o mundo como educadoras ambientais, naturalmente que são, por sua formação biológica e capacidade de sentir. Porém, é importante identificar que esses sentimentos não são exclusivos das mulheres, mas também e principalmente dos homens. Homens paridos, criados e educados por mulheres. Talvez seja esse nosso maior desafio. Despertar essa mística dos homens e permitir que eles a sintam, com tanta ou mais intensidade com que a sentimos.

Quais são os maiores obstáculos à disseminação de uma cultura da paz no Brasil?
Nossa realidade é a seguinte: são poucas as pessoas realmente comprometidas com as causas socioambientais, assim como com as questões de direitos humanos, políticos, liberdade de expressão e democratização da informação. Cada qual carrega sua bandeira. E assumir uma causa ou uma missão é algo muito pessoal, íntimo. O que podemos fazer é identificar esses formadores de opinião, apoiá-los, dar-lhes estímulo e força, para que persistam no seu trabalho e se estabeleçam. Não estamos falando de dinheiro, mas de ação, apoio moral e psicológico. Um apoio que se dá sem interesses, maniqueísmos ou segundas intenções. É aquele apoio que fortalece o ser humano para que consiga encontrar soluções, sem destruir-se, degradar-se moralmente. É importante apoiar essas pessoas, pois são elas que carregam, puxam, impulsionam outras. Se elas fraquejam, enfraquecem alguns milhões de dependentes de suas ações, que também precisam de apoio.

Como o movimento atua?
Muitas vezes, mulheres ou homens que lideram comunidades são pressionados, intimidados e ameaçados por corruptos, por questões partidárias, políticas, religiosas. Procuramos, de alguma forma, apoiar essas pessoas para que tenham condições de continuar sua missão. Quando é possível, viajamos até a região. Ministramos palestras e cursos, formamos multiplicadores, conversamos com a comunidade, organizamos estratégias. Sabemos que essa pessoa permanecerá ali, quando formos embora. Dá uma sensação estranha. De um lado, satisfação enorme pela chance de poder dizer algo. De outro, a impotência, de querer fazer mais, sem saber exatamente o quê e como. O que fazer então? Tentamos preparar essa pessoa para que possa seguir em frente. Essa é uma das premissas do movimento de mulheres e de homens pela paz. Principalmente se essa pessoa for uma mulher. São elas as mais discriminadas e excluídas no processo de empoderamento socioeconômico. Conquistaram o mercado de trabalho, são a maioria consumidora, mas não foram preparadas para ter poder.

O que é a dança pela água em missão de paz?
No Brasil, estamos conectados com comunidades de todos os continentes. Falamos com os países de língua portuguesa da África, como Cabo Verde, Moçambique, Angola, Timor Leste. Falamos com países de língua espanhola, como Canárias, Bolívia, Uruguai e a própria Espanha. Falamos com países de língua francesa e árabe. Assim, com o nosso jeito brasileiro, vamos falando aqui e acolá. Ou apenas dançando, afinal, o corpo também fala. Aliás, grita. Aí, graças à internet, ouve-se do Oiapoque ao Chuí. É nossa prioridade trabalhar a autoestima feminina. Tanto a exterior quanto a interior, para que as mulheres possam ser empoderadas. Para nós, esse trabalho é um ritual traduzido em dança. Seja para o mercado de trabalho, o empreendedorismo, a economia, o amor, a família, o empoderamento de mulheres é a meta. E, assim, não permitir que sejam tratadas como mais uma consumidora ou uma mulher-commodity (mercadoria).

O que vocês dançam?
São danças étnicas árabes que se encontram com as danças regionais brasileiras. Essa fusão é que chamamos de samba do ventre, daí nasceu a Rede para Difusão da Cultura Árabe-Brasileira Samba do Ventre. Dessa brincadeira de criança, criei a técnica Samba do ventre, cujos direitos autorais foram doados com o objetivo de viabilizar parcerias e investimentos socioeducacionais, a fim de formar crianças e adolescentes vítimas das guerras e da violência urbana e/ou rural para dança, teatro, música, cinema, literatura e artes plásticas, além de laboratórios de comunicação corporal aplicada a treinamentos em recursos humanos. As danças beduínas aplicadas na oficina objetivam resgatar a memória ancestral que todas as mulheres têm de suas relações com o ciclo hidrológico, a partir dos movimentos executados pelas beduínas quando agradeciam os deuses pelo presente que lhes traziam de bons ventos, boas águas e boas colheitas.

Como participar das oficinas?
Estamos em caravana pelo Brasil e pelo exterior com as oficinas, que são gratuitas, abertas ao público e sempre convidamos a comunidade local para participar ou mesmo organizar uma oficina em sua região. É só enviar o e-mail para mulherespelapaz@bece.org.br, com uma proposta, tema, evento. É importante ressaltar que a oficina é exclusivamente para mulheres, sem a presença de homens no recinto de atividades. Somente permitimos a participação deles quando existe um preparo para cultura de paz e um engajamento do grupo masculino nas questões de gênero. Não estamos excluindo os homens, mas preparando as mulheres para acolhê-los em suas feminísticas. Sabemos que esse acolhimento não se dá da noite para o dia. É uma longa trajetória até que homens e mulheres possam estar um ao lado do outro no mesmo ritmo, na mesma roda com um pacto de igual para igual, com compromissos e missões.

2 comentários:

  1. Ajudar este blog a acontecer, no período que passei trabalhando para o selo Nova Consciência, foi mais que uma tarefa profissional. Acredito que seja próprio de nós, mulheres, envolver muita emoção e sentimento em tudo o que fazemos, e pra mim há muita emoção e sentimento e vida nesse projeto. E esta entrevista é mais uma evidência de que nós, mulheres, somos força transformadora e temos muito a oferecer para este planeta que nos acolhe amorosamente. Beijo, Amyra.

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  2. amyra preciso falar contigo (rosesetor@terra.com.br) acho q o email q tenho esta errado, por favor faça contato. obrigada

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