quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Todos os instrumentos da economia verde obedecem à mesma lógica perversa da financeirização


Por Gabriel Brito, no Correio da Cidadania

O de­bate am­bi­ental tem tudo para ser es­ca­mo­teado ou re­petir ve­lhas ter­gi­ver­sa­ções sobre de­sen­vol­vi­mento e sus­ten­ta­bi­li­dade no ce­nário elei­toral que co­meça a se aquecer. Mais ainda no que tange a cha­mada eco­nomia verde, con­ceito ainda novo para o pú­blico. Co­lu­nista do Cor­reio da Ci­da­dania, a eco­no­mista e ati­vista so­ci­o­am­bi­ental Amyra El Kha­lili acaba de lançar a 2ª edição do e-book Com­mo­di­ties Am­bi­en­tais em Missão de Paz – Novo mo­delo econô­mico para Amé­rica La­tina e o Ca­ribe. Como até o tí­tulo su­gere, não se trata de um de­bate de fácil apre­ensão. Nesta en­tre­vista, tra­tamos de trazer tais con­ceitos à luz.

“As com­mo­di­ties am­bi­en­tais são o oposto das com­mo­di­ties con­ven­ci­o­nais por fa­zerem con­tra­ponto aos cri­té­rios de pa­dro­ni­zação e co­mer­ci­a­li­zação, ao ques­tioná-los tec­ni­ca­mente con­fron­tando os nú­meros e es­ta­tís­ticas das grandes es­calas de pro­dução, in­cluindo as va­riá­veis so­ciais e am­bi­en­tais e prin­ci­pal­mente as rein­vin­di­ca­ções dos que são os le­gí­timos re­pre­sen­tantes de sua ‘emi­nência parda, O Mer­cado’, ou seja, os pro­du­tores e con­su­mi­dores que somos todos e todas nós”, ex­plicou.

Na ex­tensa en­tre­vista, Amyra El Kha­lili também cri­tica os li­mites do dis­curso am­bi­en­ta­lista ma­jo­ri­tário, pois em sua visão co­loca motes de fácil as­si­mi­lação – como “água não é mer­ca­doria” – acima da aná­lise do mo­delo de pro­dução e con­sumo no qual es­tamos todos in­se­ridos. Do outro lado, trata de pre­cisar as di­fe­renças entre mer­cados fi­nan­cei­ri­zados e oli­go­po­li­zados da­queles que en­volvem pro­du­tores e con­su­mi­dores de pe­quena es­cala, em nome de quem sempre se es­ti­mulam os ins­tru­mentos de eco­nomia sus­ten­tável, mi­ti­gação de danos, com­pen­sa­ções am­bi­en­tais etc.   

“Uma coisa é fi­nan­ciar um pro­jeto de mi­ti­gação (re­dução de emis­sões), a outra é emitir tí­tulos para as Bolsas ou ne­go­ciar com­mo­di­ties nas Bolsas. São coisas di­fe­rentes, têm fun­ções di­fe­rentes; não de­ve­riam se fundir e muito menos se con­fundir. Ocorre que com os ins­tru­mentos da eco­nomia verde ci­tados an­te­ri­or­mente, estão fun­dindo e con­fun­dindo pro­po­si­ta­da­mente os con­tratos em uma ar­qui­te­tura fi­nan­ceira pe­ri­gosa. Mi­tigar não ocorre da noite para o dia, leva anos e anos, e muitos que estão as­si­nando con­tratos, acordos e pro­jetos nem es­tarão vivos para saber seus re­sul­tados, com­pro­me­tendo assim o pa­trimônio am­bi­ental e cul­tural das pre­sentes e fu­turas ge­ra­ções, como é o caso das terras dos povos in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais”, ana­lisou.

A en­tre­vista com­pleta com Amyra El Kha­lili pode ser lida a se­guir.

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Cor­reio da Ci­da­dania: Co­me­çando pelo tí­tulo do livro, o que são com­mo­di­ties am­bi­en­tais e quais suas fi­na­li­dades na eco­nomia atual?

Amyra El Kha­lili: Pri­mei­ra­mente, é pre­ciso com­pre­ender o que são “com­mo­di­ties” para de­pois de­fi­nirmos o que são “com­mo­di­ties am­bi­en­tais”. Com­mo­di­ties são mer­ca­do­rias pa­dro­ni­zadas para compra e venda que adotam cri­té­rios in­ter­na­ci­o­nais de co­mer­ci­a­li­zação em mer­cados or­ga­ni­zados (bur­sá­teis, ou seja, de Bolsas de Mer­ca­do­rias e de Fu­turos). Hoje clas­si­fi­camos as pro­du­ções con­ven­ci­o­nais em com­mo­di­ties agro­pe­cuá­rias (soja, milho, café, boi, cana, cacau, açúcar etc.) e com­mo­di­ties mi­ne­rais (pe­tróleo, gás, ouro, prata, cobre, ferro etc.).

Foi jus­ta­mente com o ob­je­tivo de ques­ti­onar como se dão esses “cri­té­rios” de pa­dro­ni­zação e seu modus ope­randi que passei a es­tudar o binômio “água e energia” e cu­nhei a ex­pressão “com­mo­di­ties am­bi­en­tais”. Fui ope­ra­dora de com­mo­di­ties e de fu­turos por mais de duas dé­cadas, treinei e ca­pa­citei ope­ra­dores para as cor­re­toras, passei a ser es­tra­te­gista em en­ge­nharia fi­nan­ceira, es­tru­turei e montei quatro cor­re­toras as­so­ci­adas à Bolsa de Mer­ca­do­rias & de Fu­turos (an­tiga BM&F), na dé­cada de 90 ne­go­ciava duas to­ne­ladas de ouro por dia nos mer­cados spot (à vista) e de­ri­va­tivos (fu­turos) até chegar à con­dição de con­sul­tora da BM&F as­ses­so­rando-a na im­plan­tação de ins­tru­mentos econô­mico-fi­nan­ceiros, como, por exemplo, o con­trato fu­turo de soja em grão a granel. Fiz a rota da soja no Brasil para o lan­ça­mento deste con­trato fu­turo de soja. Como co­nheço essa en­gre­nagem por dentro, sei se­parar pro­dução de fi­nanças como também iden­ti­ficar quando pro­dução e fi­nanças se “fundem e con­fundem”.

As com­mo­di­ties am­bi­en­tais são o oposto das com­mo­di­ties con­ven­ci­o­nais por fa­zerem con­tra­ponto aos cri­té­rios de pa­dro­ni­zação e co­mer­ci­a­li­zação, ao ques­tioná-los tec­ni­ca­mente con­fron­tando os nú­meros e es­ta­tís­ticas das grandes es­calas de pro­dução, in­cluindo as va­riá­veis so­ciais e am­bi­en­tais e prin­ci­pal­mente as rein­vin­di­ca­ções dos que são os le­gí­timos re­pre­sen­tantes de sua “emi­nência parda, O Mer­cado”, ou seja, os pro­du­tores e con­su­mi­dores que somos todos e todas nós, pa­ga­dores de im­postos e taxas, além de pa­garmos também as exor­bi­tantes taxas de juros pra­ti­cadas no Brasil quando re­cor­remos a em­prés­timos e fi­nan­ci­a­mentos. 
Assim sendo as “com­mo­di­ties am­bi­en­tais” são mer­ca­do­rias ori­gi­ná­rias de re­cursos na­tu­rais, pro­du­zidas em con­di­ções sus­ten­tá­veis, e cons­ti­tuem os in­sumos vi­tais para a in­dús­tria e a agri­cul­tura. Estes re­cursos na­tu­rais se di­videm em sete ma­trizes: 1. água; 2. energia, 3. bi­o­di­ver­si­dade; 4. flo­resta; 5. mi­nério; 6. re­ci­clagem; 7. re­dução de emis­sões po­lu­entes (no solo, na água e no ar). As com­mo­di­ties am­bi­en­tais estão sempre con­ju­gadas a ser­viços so­ci­o­am­bi­en­tais – eco­tu­rismo, tu­rismo in­te­grado, cul­tura e sa­beres, edu­cação, in­for­mação, co­mu­ni­cação, saúde, ci­ência, pes­quisa e his­tória, entre ou­tras va­riá­veis que não são con­si­de­radas nas com­mo­di­ties con­ven­ci­o­nais.

En­quanto as com­mo­di­ties con­ven­ci­o­nais (agro­pe­cuá­rias e mi­ne­rais) se con­cen­tram em al­guns poucos pro­dutos da pauta de ex­por­tação com es­calas de pro­dução, com alta com­pe­ti­vi­dade e tec­no­logia de ponta (trans­genia, na­no­tec­no­logia, bi­o­logia sin­té­tica, ge­o­en­ge­nharia etc.) nas com­mo­di­ties am­bi­en­tais de­sen­vol­vemos cri­té­rios de pro­dução al­ter­na­tiva como a agro­e­co­logia, a or­gâ­nica, a per­ma­cul­tura, a bi­o­di­nâ­mica, a agri­cul­tura de sub­sis­tência con­sor­ciada com pes­quisa de fauna e flora, como as plantas me­di­ci­nais, exó­ticas e em ex­tinção. Exem­pli­fico a pes­quisa com o banco de ger­mo­plasma do bioma ma­ca­ro­nésia (misto de bioma amazô­nico com mata atlân­tica).

É o caso da se­mente de linho e das tin­turas res­ga­tadas pelo banco de ger­mo­plasma para bor­dados tra­di­ci­o­nais da Ilha da Ma­deira em Por­tugal que foram clo­nados pelos chi­neses e in­dus­tri­a­li­zados. O mer­cado foi inun­dado por fal­si­fi­cação chi­nesa dos bor­dados da Ilha da Ma­deira. Re­sul­tado: as bor­da­deiras já não querem mais en­sinar suas fi­lhas o ofício por serem ex­plo­radas pela in­dus­tri­a­li­zação e por em­pre­sá­rios que ex­portam seus bor­dados para bou­ti­ques e pagam uma mi­séria para as bor­da­deiras.

Outra con­tra­dição: en­quanto na Amazônia com­ba­temos a bi­o­pi­ra­taria, nos países do norte pes­quisam as se­mentes e es­pé­cies para re­cu­perar o que de­gra­daram e des­ma­taram. São essas con­tra­di­ções, seus pa­ra­doxos e re­fle­xões entre pro­blemas e so­lu­ções que es­tamos de­ba­tendo e ana­li­sando ao cons­truir co­le­ti­va­mente o con­ceito “com­mo­di­ties am­bi­en­tais”. As com­mo­di­ties am­bi­en­tais são como um es­pelho di­ante da face do sis­tema fi­nan­ceiro para que pos­samos en­xergar em tempos de trevas al­guma luz no fim do túnel, pro­pondo um mo­delo de tran­sição à eco­nomia de mer­cado em sua fase ne­o­li­beral (neo = novo; li­beral = livre mer­cado).

Ora se vi­vemos em uma eco­nomia onde quem co­manda é o livre mer­cado, por que so­mente os de­ten­tores de ca­pital podem de­cidir sobre o que, como e de que forma de­vemos pro­duzir e con­sumir? Se é livre para os ca­pi­ta­li­zados, por que deles somos re­féns e es­tamos “presos”? De­vemos ser eter­na­mente “es­cravos do livre mer­cado”?

Se somos os que pro­duzem, os que con­somem, os que pagam im­postos, taxas e os juros, por que temos que nos su­bor­dinar às re­gras de pa­dro­ni­zação e co­mer­ci­a­li­zação in­ter­na­ci­o­nais, fora de nossa re­a­li­dade e ainda aceitar pas­si­va­mente que esse mer­cado se “au­tor­re­gule”?

No Brasil sa­bemos que o le­gis­lador é ques­ti­o­nável e muitas vezes in­justo; é quando a lei be­ne­ficia o réu (o de­gra­dador) e pe­na­liza a ví­tima (o am­bi­ente). E quando é con­ve­ni­ente para bancos e cor­po­ra­ções, pre­va­lece o ne­go­ciado sobre o le­gis­lado.

Cor­reio da Ci­da­dania: Con­si­dera a ex­plo­ração das com­mo­di­ties am­bi­en­tais sus­ten­tável? Qual a “se­pa­ração a se fazer do joio do trigo”, como a obra propõe?

Amyra El Kha­lili: As ma­trizes das com­mo­di­ties am­bi­en­tais são re­cursos na­tu­rais e pro­cessos re­no­vá­veis e não re­no­vá­veis: a água, a energia, a bi­o­di­ver­si­dade, a flo­resta, o mi­nério, a re­ci­clagem, a re­dução de emis­sões de po­lu­entes (no solo, na água e no ar). Não são mer­ca­do­rias, não podem ser “co­mo­di­ti­zadas” por se tra­tarem de bens di­fusos, de uso comum do povo.

As com­mo­di­ties am­bi­en­tais são as mer­ca­do­rias que se ori­ginam destas ma­trizes, por exemplo, o doce de goiaba da pro­du­tora de doces de Campos dos Goy­ta­cazes (RJ). A goi­a­beira é ma­triz. A goiaba é ma­téria prima, o fruto. A mer­ca­doria é o doce de goiaba. A pres­ta­dora de ser­viços é a mu­lher do­ceira de Campos dos Goy­ta­cazes que aprendeu com a índia Goy­tacá a re­ceita tra­di­ci­onal para fazer goi­a­bada cascão. A mu­lher do­ceira se or­ga­niza em as­so­ci­ação e co­o­pe­ra­tiva. A água e a energia como com­mo­dity am­bi­ental, neste caso, é o in­sumo usado pela mu­lher do­ceira para pro­duzir o doce de goiaba. Torna-se com­mo­dity am­bi­ental quando essa mu­lher do­ceira cuida da bacia hi­dro­grá­fica e tra­balha com energia re­no­vável e/ou ma­xi­mi­zando o uso da água e da energia para poder pro­duzir seu doce. É quando água e energia são cap­tadas da na­tu­reza e passam para a ca­deia pro­du­tiva.

Nas com­mo­di­ties am­bi­en­tais tra­ba­lhamos as sete ma­trizes in­te­gradas ao apren­dermos como fun­ciona um ecos­sis­tema. Na na­tu­reza não há se­pa­ração entre as ma­trizes porque a na­tu­reza está in­te­grada. Se se­pa­ramos em sete ma­trizes é para poder es­tudar e ana­lisar os im­pactos so­ci­o­e­conô­micos de seu uso jus­ta­mente para não per­mitir a ex­plo­ração de­sen­freada e nem o ex­tra­ti­vismo in­dus­tri­a­li­zado como ocorreu no de­sastre am­bi­ental com a mi­ne­ração em Ma­riana, Minas Ge­rais.

Es­tamos fa­lando de com­mo­dity, ou seja, de mer­cado or­ga­ni­zado e não de ex­tra­ti­vismo pura e sim­ples­mente (sem or­ga­ni­zação so­cial). Com­mo­dity não se dá na in­for­ma­li­dade e nem é pos­sível dizer que qual­quer coisa vira com­mo­dity na ile­ga­li­dade e sem cri­tério de pa­dro­ni­zação. Agora mer­ca­doria pode ser lí­cita tanto quanto ilí­cita. A lista de coisas ilí­citas que se tornam mer­ca­do­rias é enorme, dá pano pra burca!

Na eco­nomia verde chamam os pro­cessos de ser­viços ecos­sis­tê­micos e am­bi­en­tais. Ocorre que também não são “ser­viços”, já que a na­tu­reza não está a ser­viço dos hu­manos, não cobra por seus tra­ba­lhos. No con­ceito “com­mo­di­ties am­bi­en­tais” es­tamos fa­lando de “be­ne­fí­cios pro­vi­den­ciais” e não de ser­viços am­bi­en­tais.

Se al­guém presta algum ser­viço nessa equação, é a bor­da­deira da Ilha da Ma­deira, a cos­tu­reira, o ex­tra­ti­vista, a que­bra­deira de coco de ba­baçu, o ri­bei­rinho que pesca o peixe, a do­ceira que re­tira a goiaba man­tendo a goi­a­beira em pé e plan­tando uma muda de goi­a­beira ao lado da ár­vore que ex­traiu o fruto, os povos in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais que pro­tegem e guardam as flo­restas e as águas. Estes, sim, prestam ser­viços e de­ve­riam ser de­vi­da­mente re­mu­ne­rados por manter os “be­ne­fí­cios pro­vi­den­ciais” que a na­tu­reza nos pro­por­ciona. Eles e elas tra­ba­lham para que te­nhamos água em quan­ti­dade e qua­li­dade, assim como o ar, a terra e o mar.

Cor­reio da Ci­da­dania: E os ver­da­deiros pres­ta­dores de ser­viço estão sendo ex­cluídos dos be­ne­fí­cios econô­micos?

Amyra El Kha­lili: A aca­demia e as grandes ONGs têm por há­bito criar novas ex­pres­sões e pa­la­vras-chaves para des­viar a atenção do prin­cipal, tanto os que de­fendem o ne­o­li­be­ra­lismo quanto os que o cri­ticam. É muita ter­gi­ver­sação po­lí­tica, dis­torção e en­vi­e­sa­mento das ban­deiras e justas causas que de­fen­demos e dis­cu­timos no mundo real. Mas o povo não é bobo. É bom, mas não é bobo. Como disse uma li­de­rança Ja­mi­nawá “ca­pi­vara é ca­pi­vara, paca é paca, cobra é cobra e nem vem com esses nomes com­pli­cados que a gente não sabe o que é, pra gente as coisas são sim­ples”.

Se usamos a pa­lavra-ex­pressão “com­mo­di­ties” é porque do­mi­namos o as­sunto e es­tamos re­ba­tendo ar­gu­mentos frouxos e in­con­sis­tentes. Der­ru­bando mitos que se apre­sentam como ver­dades ab­so­lutas e in­ques­ti­o­ná­veis. Quem nos ouve e nos lê com atenção en­tende per­fei­ta­mente o que es­tamos fa­lando.

Também nunca soube de um in­ves­tidor que co­lo­casse di­nheiro em algo que não en­ten­desse, pelo con­trário, se o fazem sem en­tender é porque estão sendo en­ga­nados. En­ganar pes­soas é es­te­li­o­nato (abuso da boa fé do in­di­víduo) e se tiver pa­péis com pa­la­vras-ex­pres­sões en­ro­ladas, cer­ti­fi­ca­dores du­vi­dosos, au­di­tores in­com­pe­tentes (na me­lhor das hi­pó­teses) é fraude. Se tiver juros im­pra­ti­cá­veis e es­cor­chantes, é agi­o­tagem. Daí a coisa sai da es­fera, do campo téc­nico e ide­o­ló­gico e passa à con­dição de ju­rí­dico-econô­mico. Nessa úl­tima hi­pó­tese, é crime.

Por­tanto, es­tamos en­trando no ter­ri­tório do di­reito penal, mais es­pe­ci­fi­ca­mente no di­reito am­bi­ental e no di­reito hu­mano sem perder de vista que es­tamos tra­tando também com di­reito econô­mico, tri­bu­tário e fiscal. É ma­téria mul­ti­dis­ci­plinar e não dá para uma única mortal se rogar de dou­tora no tema. Eu não me atre­veria a tanta pre­po­tência!

Senão ve­jamos, quando pri­va­ti­zaram a Vale do Rio Doce o que ven­deram? Uma em­presa es­tatal? Não, ven­deram as ri­quezas do sub­solo, o bem pú­blico, o mi­nério ex­plo­rado pela Vale do Rio Doce que passou a ter aci­o­nistas es­tran­geiros e se sub­meter às re­gras de mer­cado (ou a falta delas!). Aqui estou fa­lando de mer­cado fi­nan­ceiro e não do mer­cado como um todo que somos todos nós, pro­du­tores e con­su­mi­dores de bens e ser­viços.

Quando lei­lo­aram o pré-sal, en­tre­garam para ex­plo­ração de ou­tros países em ter­ri­tório bra­si­leiro o bem comum do povo, o pe­tróleo. Eu res­pondo sua per­gunta com outra per­gunta: é viável?

To­memos como fato a re­cente greve dos ca­mi­nho­neiros. Ao in­de­xarem os preços dos com­bus­tí­veis ao preço pra­ti­cado nas bolsas in­ter­na­ci­o­nais, as bombas de ga­so­lina e ál­cool nos postos pas­saram à con­dição de cor­re­tores e cam­bistas, com re­a­justes de preços diá­rios e ines­pe­rados.

É im­pos­sível con­viver com uma si­tu­ação dessas quando nem os ca­mi­nho­neiros con­se­guem saber o que estão pa­gando para con­ti­nu­arem na es­trada; quando nem seus sa­lá­rios estão ga­ran­tidos e ainda correm riscos de vida com as­saltos e pés­simas con­di­ções de tra­balho com a frota su­ca­teada ou como vão pagar as pres­ta­ções dos ca­mi­nhões novos que com­praram.

Quando pro­pomos “as com­mo­di­ties am­bi­en­tais” es­tamos fa­lando de al­ter­na­tivas de ge­ração de em­prego e renda para os que vivem da mi­ne­ração, da ex­plo­ração de­sen­freada do bem comum, pois os ar­gu­mentos das mi­ne­ra­doras e do agro­ne­gócio são de que tal ati­vi­dade ex­tra­ti­vista gera em­prego e renda, traz di­visas (di­nheiro de in­ves­ti­dores es­tran­geiros) para o país. Mas sa­bemos que as em­presas multi e trans­na­ci­o­nais que se es­ta­be­lecem no Brasil vêm aqui em busca de in­sumos (água e energia), de ma­téria prima (mi­nério e pro­dutos agro­pe­cuá­rios) e mão de obra ba­rata ou mesmo de graça e es­cra­vi­zada.

Eles trazem seus fun­ci­o­ná­rios bem pagos do ex­te­rior, al­ta­mente ca­pa­ci­tados fa­lando duas ou mais lín­guas, com mes­trados e dou­to­rados, não con­tratam mão de obra re­gi­onal, ex­ploram o am­bi­ente local com a cum­pli­ci­dade de po­lí­ticos. Assim pri­va­tizam-se os lu­cros e so­ci­a­lizam-se os pre­juízos.

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A pro­fes­sora e eco­no­mista Amyra El Kha­lili

Cor­reio da Ci­da­dania: Nesse sen­tido, em textos no Cor­reio da Ci­da­dania você es­creve pro­vo­ca­ti­va­mente que água, energia e ali­mentos são, sim, mer­ca­doria, a des­peito dos slo­gans mais fa­mosos em mo­vi­mentos so­ciais ou do dis­curso de grupos e par­tidos. Como ex­plicar isso?

Amyra El Kha­lili: Pois digo que é bem o con­trário dessas cam­pa­nhas que vêm de fora para dentro, cu­nhadas por ONGs in­ter­na­ci­o­nais quando a pa­lavra com­mo­di­ties tra­du­zida ao pé da letra sig­ni­fica mer­ca­doria. Que­rendo “pa­dro­nizar as cam­pa­nhas” para que sejam usadas em todos os con­ti­nentes, as ONGs co­metem um equí­voco e ali­mentam mais ainda a con­fusão entre pro­dução e fi­nanças. Eles fazem a mesma coisa que os co­lo­ni­za­dores que tanto cri­ticam fi­zeram: nos sub­metem a sua voz de co­mando sem nos per­guntar se essas ex­pres­sões nos servem para dizer o que gos­ta­ríamos de dizer.

Ex­plico: com­mo­di­ties é pa­lavra-ex­pressão uti­li­zada em fi­nanças e podem ser bem mais que sim­ples mer­ca­do­rias, de­pen­dendo de como é usada e em que con­texto está sendo em­pre­gada, como o agro­ne­gócio em suas pro­pa­gandas quando afirma que o Brasil se tornou o maior ex­por­tador de soja com o boom das com­mo­di­ties, tendo os chi­neses com­prando nossa pro­dução, tanto quanto os que dizem que “tudo vai virar com­mo­dity” sem ex­plicar como é pos­sível essa me­ta­mor­fose des­con­si­de­rando que ainda temos uma Cons­ti­tuição Fe­deral com o ar­tigo 225, além do di­reito econô­mico, tri­bu­tário e fiscal.

Eis a sín­tese do texto: o bem am­bi­ental é de­fi­nido pela Cons­ti­tuição como sendo "de uso comum do povo", ou seja, não é bem de pro­pri­e­dade pú­blica, mas sim de na­tu­reza di­fusa, razão pela qual nin­guém pode adotar me­didas que im­pli­quem gozar, dispor, fruir do bem am­bi­ental ou des­truí-lo. Ao con­trário, ao bem am­bi­ental, é so­mente con­fe­rido o di­reito de usá-lo, ga­ran­tindo o di­reito das pre­sentes e fu­turas ge­ra­ções.

Estão usando a pa­lavra-ex­pressão com­mo­di­ties de forma en­vi­e­sada, dis­tor­cida e des­con­tex­tu­a­li­zada ou sim­ples­mente jo­gando a pa­lavra-ex­pressão de um lado para outro sem apro­fundar o de­bate que está em curso há dé­cadas, desta forma, des­vi­ando a atenção do prin­cipal e na mai­oria das vezes in­ver­tendo o sen­tido de nossas co­lo­ca­ções, de­mons­trando que não sabem do que estão fa­lando e que des­co­nhecem os gar­galos das ca­deias pro­du­tivas de bens e ser­viços.

Cor­reio da Ci­da­dania: Mer­can­ti­li­zação da Na­tu­reza?

Amyra El Kha­lili: Desde que o pri­meiro co­lo­ni­zador meteu os pés neste con­ti­nente la­tino-ame­ri­cano ca­ri­benho, a na­tu­reza foi mer­can­ti­li­zada. Es­tamos em outra fase: a da mi­li­ta­ri­zação da na­tu­reza. Sem dú­vida é in­ques­ti­o­nável que o ob­je­tivo da “mi­li­ta­ri­zação” é para se­guir mer­can­ti­li­zando tudo e qual­quer coisa, da na­tu­reza a vida – aliás, seria hi­po­crisia dizer que esta ainda não foi mer­can­ti­li­zada. Já se vão mais de 500 anos de co­lo­ni­zação mer­cantil e nin­guém fez nada. A cada go­verno, seja de di­reita ou es­querda, re­produz-se o mesmo “modus ope­randi”. Pro­feri pa­lestra na sede do BNDES (em 2000) pro­mo­vida pelo go­verno dos EUA a falar sobre o Plano Colômbia, quando jo­garam ve­neno nas plan­ta­ções de coca, pa­poulas, ma­conha, que além de matar a terra atin­giram a po­pu­lação com graves se­quelas.

Al­guém citou essa fala nos re­la­tó­rios? Nada! O que os jor­na­listas es­cre­veram na “grande im­prensa” foi apenas o que in­te­res­sava ao mer­cado de car­bono, mas não es­cre­veram o que disse sobre a ne­ces­si­dade de criar al­ter­na­tivas agro­e­co­ló­gicas para os po­bres cam­pe­sinos (as) que plantam coca, ma­conha e pa­poulas (BERNA, Vilmar 2018).

Desta forma sou so­li­dária com as pro­postas do “Co­mu­ni­cado do Com­po­nente da FARC no Pro­grama Na­ci­onal In­te­gral de Subs­ti­tuição de Cul­tivos de Uso Ilí­cito (PNIS)”. Se que­remos paz nas flo­restas, nos campos, nas mon­ta­nhas e nas águas, temos de ca­mi­nhar para as so­lu­ções dos pro­blemas e não “pro­ble­ma­tizar mais e mais jo­gando ga­so­lina onde já há in­cêndio”.

Como é pos­sível ex­plicar para Dona Maria, para Seu João, que ali­mento não é mer­ca­doria se eles têm de com­prar na feira, no su­per­mer­cado, na pa­daria, no açougue a co­mida dos fi­lhos? Como é pos­sível ex­plicar para minha mãe que água e energia não são mer­ca­do­rias se as contas de água, luz, gás e com­bus­tível estão pela hora da morte?

Será que dá para a gente usar esse ar­gu­mento com as Em­presas-Es­tados que nos abas­tecem com água, luz e gás, que não são mer­ca­do­rias? Que o Es­tado tem de nos prover de ser­viços que ja­mais de­ve­riam ser mer­can­ti­li­zados como saúde, edu­cação, se­gu­rança pú­blica, pre­vi­dência, entre ou­tros que pa­gamos com im­postos e taxas na hora que temos que quitar nossas dí­vidas? O fun­ci­o­nário que me atende no guichê pode me isentar desses pa­ga­mentos apenas com tal ar­gu­mento?

Penso que as afir­ma­ções “água, energia e ali­mento não são mer­ca­doria” não ex­plicam nada para nin­guém, a não ser para os fun­ci­o­ná­rios pú­blicos e os da aca­demia que têm seus sa­lá­rios ga­ran­tidos no fim do mês e podem dispor de bolsas de pes­quisas para fi­carem es­tu­dando e pes­qui­sando, com des­pesas de vi­a­gens pagas pelo Es­tado ou por ins­ti­tui­ções para par­ti­ci­parem de se­mi­ná­rios, reu­niões, en­con­tros e pa­les­tras, en­quanto a grande mai­oria, na qual me in­cluo, mal con­segue manter seus em­pregos com seus di­plomas de curso su­pe­rior e al­gumas es­pe­ci­a­li­za­ções. E veja você que não fi­quei rica ne­go­ci­ando com­mo­di­ties nas Bolsas. Sigo em ca­ra­vana dando aulas em co­mu­ni­dades po­bres, muitas vezes tra­balho sem re­ceber ho­no­rá­rios.

De­vemos sem dú­vida al­guma dis­cutir a qua­li­dade do que pro­du­zimos e con­su­mimos, se o que co­memos nos ali­menta ou se o que pa­gamos tem preço justo, mas de­vemos evitar con­fundir mais ainda o que já está con­fuso e obs­curo. Enfim, para quem es­tamos fa­lando e com quem es­tamos di­a­lo­gando? Essa é a per­gunta que não quer calar.

Para os sim­ples mor­tais, ga­linha é ga­linha, paca é paca, como diz sa­bi­a­mente a li­de­rança Ja­mi­nawá do Acre.

Cor­reio da Ci­da­dania: Você es­ta­be­lece diá­logo di­reto com o que chama de “emi­nência parda”, o mer­cado. Qual o grau de in­ci­dência deste ente nas po­lí­ticas am­bi­en­tais e como você des­creve os ins­tru­mentos fi­nan­ceiros por ele de­sen­vol­vidos como in­cen­tivos de pre­ser­vação am­bi­ental?

Amyra El Kha­lili: Vamos iden­ti­ficar quem é sua emi­nência parda: o Mer­cado. Faço essa pro­vo­cação de­pois de anos e anos ou­vindo o sis­tema fi­nan­ceiro falar em meu nome sem me per­guntar o que eu penso ou o que eu gos­taria de dizer. Como ope­ra­dora da Bolsa re­petia todos os dias: o mer­cado subiu, o mer­cado caiu, o mer­cado está ner­voso, o mer­cado está pa­rado. E a gente nem se dá conta do que está di­zendo de tão con­di­ci­o­nados que fi­camos nesse uni­verso.

O mer­cado a que me re­firo no e-book “Com­mo­di­ties am­bi­en­tais em missão de paz”, como disse an­te­ri­or­mente, somos todos nós que pro­du­zimos e con­su­mimos, e não o mer­cado fi­nan­ceiro, que ab­so­lu­ta­mente não produz nada e tem so­bre­vi­vido como pa­ra­sita de ren­tismo e da es­pe­cu­lação.

O co­lega La­dislau Dowbor es­cla­rece esse im­bró­glio com rigor ci­en­tí­fico em seu in­dis­pen­sável livro “A era do ca­pital im­pro­du­tivo”. La­dislau também co­or­dena um grupo de es­tudos sobre o tema “ fi­nan­cei­ri­zação” ao qual temos con­tri­buído e apoiado por con­si­de­rarmos im­por­tante a ini­ci­a­tiva de or­ga­nizar uma frente que faça con­tra­ponto ao mo­delo ne­o­li­beral glo­ba­li­zado.

O atual sis­tema fi­nan­ceiro é que está de­ter­mi­nando o que sua emi­nência parda, o Mer­cado, deve pro­duzir e con­sumir. Por isso mesmo, se sentem à von­tade de falar em nome de sua emi­nência parda, o mer­cado, de forma ge­ne­ra­li­zada, sem se­parar mer­cado fi­nan­ceiro de mer­cado de tra­balho, de mer­cado al­ter­na­tivo, de mer­cado de pro­dução, de mer­cado de bens e ser­viços. Há mer­cados e mer­cados e dis­tin­guir pro­dução de fi­nanças é o pri­meiro passo para não con­fun­dirmos trigo com joio.

Por outro lado, acon­tece também que a eco­nomia que vi­vemos se es­ta­be­leceu (es­ta­blish­ment) no pa­ra­digma me­ca­ni­cista onde tudo tende a ser mer­can­ti­li­zado, com es­calas de pro­dução uti­li­tá­rias e não como pro­dução com valor de uso so­cial. É evi­dente que qual­quer ins­tru­mento econô­mico-fi­nan­ceiro que seja pen­sado nesse mesmo pa­ra­digma será usado para con­cen­trar mais ainda o ca­pital ren­tista (que vive de juros e não de pro­dução) do que re­al­mente ser usado para efe­ti­va­mente fi­nan­ciar a pro­dução. E con­se­quen­te­mente acabam sendo usados para fi­nan­cei­rizar (en­di­vidar) os que pro­duzem bens e ser­viços.

Por­tanto, as crí­ticas aos ins­tru­mentos econô­micos da eco­nomia verde, como Cré­ditos de Car­bono, REDD – Re­dução de Emis­sões por Des­ma­ta­mento e De­gra­dação, Cré­ditos de Eflu­entes, Cré­ditos de Com­pen­sação, Pa­ga­mentos por Ser­viços Am­bi­en­tais, Pa­ga­mentos por Ser­viços Ecos­sis­tê­micos etc. são per­ti­nentes e me­recem atenção. Prin­ci­pal­mente que ór­gãos fis­ca­li­za­dores e re­gu­la­dores, bem como o Mi­nis­tério Pú­blico, apurem as de­nún­cias que estão sendo re­gis­tradas em nossas redes de in­for­mação.

No en­tanto, não po­demos ge­ne­ra­lizar e con­fundir gente séria e bem in­ten­ci­o­nada com opor­tu­nistas, es­pe­cu­la­dores e cri­mi­nosos. Muitos acre­ditam in­gênua e equi­vo­ca­da­mente que tais ins­tru­mentos fi­nan­ci­arão a tran­sição de uma eco­nomia marrom para uma eco­nomia verde, e não estão com­pre­en­dendo as ar­ma­di­lhas fi­nan­ceiras e ju­rí­dicas en­gen­dradas com ope­ra­ções que en­volvem ques­tões de ordem ge­o­po­lí­tica ca­sadas com terras e re­cursos na­tu­rais es­tra­té­gicos, re­gu­lados e le­gis­lados com a cum­pli­ci­dade de po­lí­ticos para a im­ple­men­tação destes pe­ri­gosos con­tratos fi­nan­ceiros e mer­cantis. É o pa­cote que vem da cha­mada eco­nomia verde ou eco­nomia de baixo car­bono.

Cor­reio da Ci­da­dania: Ainda sobre tais ins­tru­mentos, que pensa de cré­ditos de car­bono e ou­tras mo­da­li­dades de com­pen­sação am­bi­ental?

Amyra El Kha­lili: Es­crevi o ar­tigo “O que são cré­ditos de car­bono?” em 1998 (pre­sente no e-book) para ex­plicar a di­fe­rença entre tí­tulos bur­sá­teis (ne­go­ci­ados em bolsas) e com­mo­di­ties (mer­ca­doria pa­dro­ni­zada) e es­cla­recer que “cré­ditos de car­bono” não podem ser “com­mo­di­ties am­bi­en­tais”.

Ques­tiono se há emissão de um tí­tulo para que e para quem ele de­veria servir? Se é um cré­dito seja do que for, como se pode usar-aplicar esse cré­dito?
Pri­mei­ra­mente, car­bono não pode ser con­si­de­rado mer­ca­doria se a in­tenção é re­duzir as emis­sões. Não existe conta para re­duzir nada no sis­tema fi­nan­ceiro, so­mente para mul­ti­plicar. Con­fundem “se­questro de car­bono” com “cré­ditos de car­bono”.

Na na­tu­reza, o se­questro de car­bono é a fo­tos­sín­tese. As plantas cap­turam o CO2 para de­pois eli­minar o oxi­gênio. Em fi­nanças não há como fazer essa equação. Ainda mais no mer­cado de com­mo­di­ties que está des­re­gu­la­men­tado e hoje a Chi­cago Board ne­gocia até 100 vezes a mesma saca de soja por ação de es­pe­cu­la­dores e ma­ni­pu­la­dores que nada têm a ver com a ati­vi­dade pro­du­tiva. Tais ações dis­torcem os preços e pre­ju­dicam os fi­nan­ci­a­mentos das la­vouras, con­di­ci­o­nando os agri­cul­tores a com­prarem as tec­no­lo­gias de ponta que os países do norte pa­ten­te­aram, como se­mentes, agro­tó­xicos, quí­micos, má­quinas e equi­pa­mentos.

Uma coisa é fi­nan­ciar um pro­jeto de mi­ti­gação (re­dução de emis­sões), a outra é emitir tí­tulos para as Bolsas ou ne­go­ciar com­mo­di­ties nas Bolsas. São coisas di­fe­rentes, têm fun­ções di­fe­rentes; não de­ve­riam se fundir e muito menos se con­fundir. Ocorre que com os ins­tru­mentos da eco­nomia verde ci­tados an­te­ri­or­mente, estão fun­dindo e con­fun­dindo pro­po­si­ta­da­mente os con­tratos em uma ar­qui­te­tura fi­nan­ceira pe­ri­gosa.

Sus­pei­tamos que o fazem para se apro­pri­arem de terras e re­cursos na­tu­rais es­tra­té­gicos (bens co­muns). Com a crise fi­nan­ceira in­ter­na­ci­onal de 2008 após a quebra do Banco Lehman Brothers, os in­ves­ti­mentos que es­tavam no sub­prime (hi­po­tecas de re­si­dên­cias) mi­graram para o que cha­mamos de sub­prime am­bi­ental (hi­po­tecas de terras).

Como disse, ne­nhum in­ves­tidor co­loca di­nheiro na­quilo que não co­nhece e nem as­sina con­tratos que não en­tende. Ainda mais com con­ta­bi­li­dades com­plexas em con­tratos fi­nan­ceiros e mer­cantis que ne­ces­sa­ri­a­mente devem medir a quan­ti­dade de car­bono se­ques­trado. Como é feita a me­dição? Quem au­dita tal en­ge­nharia?

Se na aca­demia há di­ver­gên­cias do que pode ou não ser “se­ques­trado”, se es­pe­ci­a­listas a todo mo­mento pu­blicam es­tudos e re­la­tó­rios que der­rubam teses e pro­jetos de car­bono, em quem con­fiar ta­manha ta­refa para as­sinar acordos, con­tratos e pro­jetos que en­volvem bi­lhões e ainda ali­enam terras por 30, 40, 50 e até 100 anos?

Mi­tigar não ocorre da noite para o dia, leva anos e anos, e muitos que estão as­si­nando con­tratos, acordos e pro­jetos nem es­tarão vivos para saber seus re­sul­tados, com­pro­me­tendo assim o pa­trimônio am­bi­ental e cul­tural das pre­sentes e fu­turas ge­ra­ções, como é o caso das terras dos povos in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais.

Cor­reio da Ci­da­dania: En­quanto não esse de­bate fica au­sente do co­nhe­ci­mento pú­blico as ex­pe­ri­ên­cias aqui cri­ti­cadas avançam pelo Brasil.

Amyra El Kha­lili: Sim, e não pre­ci­samos ir até lá na Amazônia para ve­ri­ficar: aqui mesmo, em ter­ri­tório pau­lista, as terras dos agri­cul­tores podem ficar em ga­rantia por tantos anos e ali­e­nadas so­mente para re­ce­berem os trocos dos tais “ser­viços am­bi­en­tais e ecos­sis­tê­micos”, seja de se­questro de car­bono ou da gestão das águas de uma re­presa, ca­cho­eira ou rio que passa dentro de uma pro­pri­e­dade ou fa­zenda? Será que não estão co­lo­cando em risco o pa­trimônio pú­blico (como são as terras in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais da União) ou pri­vado, como são as terras de meus avós ma­ternos e pa­ternos em Minas Ge­rais e na Pa­les­tina, para re­ce­berem um valor in­sig­ni­fi­cante quando essas terras valem muito mais, não para serem ex­plo­radas à exaustão, mas por nos pro­por­ci­o­narem os “be­ne­fí­cios pro­vi­den­ciais” que nos mantêm vivos, como água, ar e solo?

Ana­li­sando um con­trato que es­tamos au­di­tando, en­con­tramos a se­guinte cifra: con­tra­taram uma con­sul­tora in­di­vi­dual em ca­pa­ci­tação para plan­tarem hortas co­mu­ni­tá­rias pela mó­dica quantia de R$ 95.000,00 por 15 (quinze) meses; em con­tra­par­tida ofe­re­ceram a uma li­de­rança in­dí­gena o valor de R$ 180.000,00 (para três al­deias) por ano em troca de as­si­narem um con­trato de REDD+. Veja , a con­sul­tora in­di­vi­dual re­cebe pouco mais da me­tade do valor ofe­re­cido para três al­deias. É uma dis­cre­pância ab­surda. Nunca re­ce­bemos essa mó­dica quantia para ca­pa­citar co­mu­ni­dades nos cursos de com­mo­di­ties am­bi­en­tais. Como es­tamos au­di­tando, por se­gredo de jus­tiça não vou re­velar nomes.

Todos os ins­tru­mentos da eco­nomia verde obe­decem a mesma ló­gica de ou­tros con­tratos fi­nan­ceiros e mer­cantis tanto quanto a ló­gica dos em­prés­timos in­ter­na­ci­o­nais que es­cra­vizam a nossa eco­nomia, tais como os em­prés­timos do FMI, do Banco Mun­dial, dos Bancos Mul­ti­la­te­rais para fi­nan­ci­a­mento de obras pú­blicas, de trans­porte e de sa­ne­a­mento bá­sico. Basta olhar a quan­ti­dade de obras pa­radas cujos in­ves­ti­mentos fi­zeram de es­tradas, tri­lhos e trens um monte de su­cata.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que pensa, em li­nhas ge­rais, dos con­ceitos de eco­nomia verde?

Amyra El Kha­lili: Par­ti­ci­pamos de vá­rias frentes que se opõem ao mo­delo econô­mico-fi­nan­ceiro cha­mado “eco­nomia verde”. Somos con­trá­rios aos pro­jetos de “eco­nomia verde” que vêm de cima para baixo e de fora para dentro, como a im­ple­men­tação de uma agenda de venda rá­pida, com ob­je­tivos como le­gislar, dar nú­meros e es­ta­tís­ticas.

Há três prin­ci­pais mer­cados mun­diais ilí­citos: o de armas, o do nar­co­trá­fico e o da bi­o­pi­ra­taria. Esse di­nheiro passa pelo sis­tema fi­nan­ceiro - o ver­da­deiro res­pon­sável pelo fi­nan­ci­a­mento do mer­cado de armas e de todo o apa­rato ge­rador de guerras e mi­sé­rias. De­fen­demos pro­jetos so­ci­o­am­bi­en­tais que, fo­cados na pre­ser­vação e con­ser­vação am­bi­ental, con­tri­buem para a se­gu­rança pú­blica, com­batem as drogas, a vi­o­lência contra a mu­lher, a cri­mi­na­li­dade, a dis­cri­mi­nação ét­nica, ra­cial e re­li­giosa, pro­movem a igual­dade de gê­nero, con­correm para a ge­ração de em­prego, ocu­pação e renda.

Como al­ter­na­tiva, cons­truímos co­le­ti­va­mente a eco­nomia so­ci­o­am­bi­ental. Di­fe­ren­te­mente da eco­nomia verde, a so­ci­o­am­bi­ental passa por um pro­cesso de con­sulta à base po­pular, de ampla con­sulta pú­blica e su­fi­ci­en­te­mente lenta para ser en­ten­dida. O pro­cesso que ado­tamos é de baixo para cima e de dentro para fora. É, so­bre­tudo, des­vin­cu­lado da agenda de elei­ções. Todo tra­balho de con­sulta e cons­trução co­le­tiva de­mora anos, dadas as di­fi­cul­dades de chegar onde poucos con­se­guem, em re­giões afas­tadas e sem acesso à co­mu­ni­cação, lo­cais ca­rac­te­ri­zados por uma po­pu­lação que ne­ces­sita de as­sis­tência e ori­en­tação sobre im­pactos so­ci­o­am­bi­en­tais

Agimos em duas frentes: pri­meiro, ao ori­entar a res­peito da pro­dução de um pro­jeto econô­mico, fi­nan­ceiro e ju­rí­dico com a mu­dança de pa­ra­digma; se­gundo, ao di­vulgar e pu­blicar re­la­tó­rios pro­du­zidos por for­ma­dores de opi­nião e li­de­ranças que par­ti­ci­param de cursos e ofi­cinas que apli­camos em par­ceria com uni­ver­si­dades, cen­tros de pes­quisas e grupos lo­cais, além de di­vulgar também os re­la­tó­rios de ou­tras frentes que apoi­amos.

Os re­la­tó­rios in­dicam o mapa da re­gião, o perfil da po­pu­lação, as ca­rac­te­rís­ticas do bioma, iden­ti­ficam as po­ten­ci­a­li­dades al­ter­na­tivas da bi­o­di­ver­si­dade, entre ou­tras in­for­ma­ções re­le­vantes. Dessa forma, podem apre­sentar os tipos de pro­blemas a eles co­nec­tados, como o de água con­ta­mi­nada e o do en­fren­ta­mento de vi­o­lência, de drogas, de de­gra­dação am­bi­ental, ex­clusão e de­si­gual­dades so­ciais e propor so­lu­ções. É assim que se ide­a­lizam pro­jetos so­ci­o­am­bi­en­tais e se buscam ma­neiras de vi­a­bi­lizá-los.

Cor­reio da Ci­da­dania: A maior trans­pa­rência sobre os con­ceitos de eco­nomia verde nos le­varia a ob­servar di­lemas e jogos de in­te­resse pa­re­cidos com os que o país em crise se de­fronta no mo­mento?

Amyra El Kha­lili: Antes de ide­a­lizar um pro­jeto so­ci­o­am­bi­ental, é ne­ces­sário que a so­ci­e­dade seja de­vi­da­mente in­for­mada, em lin­guagem de fácil com­pre­ensão, sobre ques­tões téc­nico-ci­en­tí­ficas. Nossa pro­posta é ques­ti­onar esse mo­delo econô­mico para que os atores so­ciais se in­formem me­lhor sobre as al­ter­na­tivas e riscos ao tomar suas de­ci­sões. Afinal, em casos como os dos pro­jetos oriundos do mer­cado de car­bono, re­cusar di­nheiro é um di­reito, quando não um dever.

Vá­rios casos po­de­riam ser ci­tados. Por exemplo: com a di­vul­gação do “Dossiê Acre”, demos vi­si­bi­li­dade às de­nún­cias feitas com pro­jetos do mer­cado de car­bono e pa­ga­mentos por ser­viços am­bi­en­tais no Acre. Ela­bo­rado em 2012, o es­tudo não tinha ainda con­se­guido o me­re­cido es­paço na mídia e nos mais di­versos fó­runs de de­bate, como também se ig­no­rava seu ponto de vista téc­nico, ope­ra­ci­onal, ju­rí­dico, so­ci­o­e­conô­mico, além de essas po­lí­ticas de cima para baixo in­ter­fe­rirem no modo de vida das co­mu­ni­dades in­dí­genas, tra­di­ci­o­nais e cam­pe­sinas da re­gião amazô­nica.

Temos, atu­al­mente, mais de cinco mil dis­tri­bui­dores, mul­ti­pli­ca­dores e par­ceiros na pro­dução e dis­se­mi­nação de in­for­mação. São essas par­ce­rias e “nós de co­mu­ni­cação” que formam a “ali­ança” que ora com­pleta mais de duas dé­cadas de tra­balho vo­lun­tário, sem re­cursos de em­presas e de go­vernos. Não somos a mídia. Re­pre­sen­tamos para a im­prensa um con­tra­ponto. Apoi­amos a mídia al­ter­na­tiva para que também con­siga seus fi­nan­ci­a­mentos, posto que nos presta um ser­viço de uti­li­dade pú­blica da maior re­le­vância.

Há mais de 20 anos tra­ba­lhamos nesse pro­jeto, de en­ver­ga­dura ge­o­po­lí­tica, pela cul­tura de paz, pela au­to­de­ter­mi­nação e eman­ci­pação dos povos com a cul­tura de re­sis­tência, cujo re­sul­tado se dará a longo prazo. Não bus­camos re­sul­tados ime­di­atos, mas du­ra­douros e ver­da­dei­ra­mente sus­ten­tá­veis, for­mando “ali­anças” in­que­bran­tá­veis.
Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A construção de outro modelo de financeirização depende de uma governança ambiental. Entrevista especial com Amyra El Khalili
Por: Patricia Fachin | - IHU On Line - 04 Outubro 2016

Para construir um modelo de finanças diferente, que esteja a favor da vida, é preciso antes de tudo distinguir o significado de dois termos: “financiar” e “financeirizar”, diz a economista Amyra El Khalili à IHU On-Line. Financiar, exemplifica, consiste em “proporcionar um empréstimo para que a costureira compre uma máquina de costura e consiga pagá-la nas condições de sua produção”. Financeirizar, de outro lado, “significa emprestar o dinheiro para a costureira comprar a máquina causando o endividamento e, consequentemente, fazendo com que ela não consiga cumprir com seu compromisso, tornando-a escrava da dívida”.

Outra distinção importante, esclarece a economista, consiste em compreender que “nem todo dinheiro é ruim, assim como nem toda forma de o gastar é saudável”. Segundo ela, é a partir dessas compreensões que é possível “construir uma finança diferente, que seja a favor da vida financiando projetos socioambientais, e não a globalizada e enraizada no modelo neoliberal que financia o mercado de armas, drogas, favorece a biopirataria (ilícito), sustenta e mantém o lícito da concentração por corporações com produção suja e degradante e governos corruptos”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Amyra comenta as posições defendidas pelo economista francês Yann Boutang, acerca das possibilidades de pôr as finanças a serviço da transição energética, do combate à poluição química nas terras aráveis e a garantia de uma renda decente para todos. “Precisamos desenvolver um modelo de transição energética com planejamento financeiro conjuntamente com a transição do modelo econômico, pois, do contrário, não haverá energia renovável ou não renovável que suporte a demanda de produção e resolva o problema socioambiental, que, consequentemente, provocam bruscas mudanças climáticas”, frisa. Para realizar essa transição, menciona, é preciso resgatar “o conceito de governança ambiental” e “isso não depende de dinheiro; depende da sensibilização de corações e mentes” e “especialmente, de um código de ética e moral que seja universal”.

Na avaliação da economista, a esquerda pouco tem participado do debate sobre a financeirização porque “ainda está presa aos conceitos da política pelo poder” e porque “não quer discutir finanças, pois essa discussão passa por prestação de contas, auditoria, transparência, meandros delicados e polêmicos”. Por conta disso, defende, “o ativismo pelos direitos humanos e o ambiental deveria ser isento e não se envolver em disputas político-partidárias, pois o povo e o ambiente devem estar acima dos interesses por subserviência política ou por solidariedade corporativista entre pares”.

Amyra El Khalili é economista graduada pela Faculdade de Economia, Finanças e Administração de São Paulo. Atuou nos Mercados Futuros e de Capitais como operadora da bolsa, com uma carteira de clientes que ia do Banco Central do Brasil à Bombril S/A e ao Grupo Vicunha. Abandonou o mercado financeiro para investir seu tempo e energia no ativismo. É fundadora do Movimento Mulheres pela P@Z e editora da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras). Khalili ministra cursos de extensão, treinamento e capacitação socioambiental, por meio de parcerias entre a rede, universidades, entidades locais e centros de pesquisa. É autora do e-book gratuito Commodities Ambientais em missão de paz – novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe (São Paulo: Nova Consciência, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são suas críticas à financeirização no modo como ela tem sido desenvolvida hoje?

Amyra El Khalili – A financeirização tem permeado os mais diversos setores da economia e provocado distorções entre a economia real (produção) e a economia financeira. A economia real está baseada em produtividade na indústria, agropecuária, comércio e serviços; já a economia financeira é a que faz circular o dinheiro nos sistemas informatizados e tecnológicos, alimentando as taxas de juros e a especulação sobre a base produtiva. Há uma diferença substancial entre financiar e financeirizar. Financiar é proporcionar um empréstimo para que a costureira compre uma máquina de costura e consiga pagá-la nas condições de sua produção. Já financeirizar significa emprestar o dinheiro para a costureira comprar a máquina, causando o endividamento e, consequentemente, fazendo com que ela não consiga cumprir com seu compromisso tornando-a escrava da dívida. É o que tem acontecido na América Latino-Caribenha, quando os países do Norte conseguem desenvolver sua produção industrial e agropecuária com o financiamento, e os países vulneráveis e em desenvolvimento ficam reféns de empréstimos sem poder se libertar do eterno endividamento público e privado, especialmente quando esse empréstimo é para os pequenos e médios empreendedores e agricultores.

Entre os setores mais endividados, por exemplo, estão os camponeses e os agricultores, pois a contração das dívidas exige garantias reais, como terras, imóveis, maquinários e equipamentos, entre outros bens que dão acesso ao recurso financeiro. Se os agricultores/as comprometem a terra para obter financiamento para a sua produção e as alienam ao sistema financeiro, passam a depender da decisão destes credores para produzir, tendo que produzir o que os credores determinam, como, por exemplo, a produção transgênica de escala, vincular sua produção a equipamentos e maquinário, a produtos químicos (agrotóxicos e defensivos); enfim, passam a depender de uma estrutura com forças assimétricas em que os trabalhadores/as da agricultura não têm poder nem há equilíbrio de relações entre eles (mesmo organizados em associações e cooperativas) e governos (ou quem os financie). E sob essa pressão do sistema financeiro entre corporações e governos para garantir a escala de produção, a terra, monetariamente falando, é o bem mais barato, pois caro é o que você põe em cima dela.

Daí o avanço desenfreado sobre as áreas de florestas que detêm, ainda hoje, graças aos povos indígenas e tradicionais, rica biodiversidade, água, minérios e alternativas energéticas, como defendia o professor Bautista Vidal, o complexo energético do século XXI, o babaçu da Amazônia para biodiesel, preservando e conservando a floresta, sem ter que derrubar sequer uma árvore, entre outras alternativas múltiplas e criativas para produção de energia renovável. Assim sendo, a financeirização, hoje, avançou sobre as riquezas naturais consideradas sem valor (financeiro) na contabilidade de produção de bens e serviços. A esse avanço do capitalismo neoliberal chamamos de “financeirização da natureza”.

IHU On-Line – Por quais razões seria preciso um novo modelo de finanças ou seria necessário usar as finanças a favor da vida, como sugere Boutang? O que significa “usar as finanças a favor da vida” e que modo essa proposta aponta para outra concepção em relação ao capital?

Amyra El Khalili – Veja o paradoxo de finanças tão discutido nos cânones das várias religiões: pode ser usada a favor da vida como a favor da morte. Aqui reside a dualidade entre Deus e o Diabo estudado por filósofos e teólogos. O que é o dinheiro? Qual sua relação entre vida e morte? Se ganhamos R$ 1.000,00 (mil reais), esse dinheiro tanto serve para pagar um curso, para comprar alimentos, para pagar nossas contas de água, luz e gás, quanto para pagar juros de cartão de crédito, limites de cheque especial, ou comprar remédios por termos contraído uma doença causada por estresse emocional, por desgaste físico de tanto trabalho e depressão.

Uma finança diferente
Nem todo dinheiro é ruim, assim como nem toda forma de o gastar é saudável. É nesse ponto que compreendo a análise de Boutang, quando se refere à necessidade de construir uma finança diferente, que seja a favor da vida financiando projetos socioambientais, e não a globalizada e enraizada no modelo neoliberal que financia o mercado de armas, drogas, favorece a biopirataria (ilícito), sustenta e mantém o lícito da concentração por corporações com produção suja e degradante e governos corruptos.
Quando tratamos de uma cifra de R$1.000,00 (mil reais), o senso comum sabe de que número estamos falando, pois todos conhecem essa cifra por um dia ter tido esse dinheiro em suas mãos. Mas quando tratamos de cifras que ultrapassam a casa dos três zeros, como 100.000 (cem mil), 1 milhão, 1 bilhão, 1 trilhão, a população não sabe a diferença que representa na economia entre tantos zeros.
É nessa casa de cifras (de mais de três zeros) que circulam os valores monetários no sistema financeiro, migrando de um continente a outro, com a velocidade de milésimos de segundos, como bem aponta o estudo do pesquisador Edemilson Paraná, em entrevista para a IHU On-Line. Quando o sistema financeiro alavanca essas cifras, arrebenta com a atividade produtiva, causando estragos enormes nas contas públicas e privadas. É das contas públicas que pode estar ocorrendo a transferência de valores destinados à educação, à saúde, à segurança pública, à previdência e à defesa e proteção do meio ambiente, para grupos privados. Este processo onera o custo de taxas de juros e tributos, em detrimento do custo de vida da população pobre, que é a maior pagadora de impostos, tema analisado pelo movimento de auditoria cidadã nas entrevistas com Maria Lucia Fattorelli e Carmen Cecilia Bressane pela IHU On-Line.

É este o sentido da mobilização da sociedade via campanhas de esclarecimento, auditorias de contas públicas e pressão com propostas proativas em favor de uma reforma tributária e fiscal que contemple e estimule o financiamento e os investimentos diretos em projetos socioambientais, na produção consciente e de menor impacto ambiental. Este é o caminho que a ferramenta finanças deve seguir em favor da vida, e não como tem sido usada até agora, para projetos de morte, provocando guerras, conflitos regionais, etnocídio e genocídio. É por essas consequências que muitos demonizam ocapitalismo e o sistema financeiro.

Têm sua razão, em partes, porque não há como negar certo comodismo e ingenuidade em acreditar que pela simples ação de uma revolução político-ideológica se conseguirá superar este modus operandi, a exploração de um ser humano pelo outro, conscientemente projetado no território mental da natureza humana. Perceba que os demais seres vivos não agem desta forma. Andam em grupo; migram em busca de alimentos e não praticam a autofagia por bens materiais e dinheiro. A moeda não faz parte do paradigma organicista dos demais seres vivos, como vivem os humanos no paradigma mecanicista, condicionados ao sucesso do ter e não do ser.
IHU On-Line – Por que as finanças são potenciais para romper com a crise sistêmica? Em que elas podem contribuir?

Amyra El Khalili – A crise sistêmica é fruto do entrelaçamento e imbricamento entre a moeda e as garantias que lastreiam essa emissão de dinheiro e do fato de que, por exemplo, cada saca de soja negociada na Bolsa de Chicago pode multiplicar-se em contratos de compra e venda futura até 100 vezes. Se em algum momento, com uma possível intervenção de bancos centrais, houver necessidade de se executar judicialmente cada contrato de soja que circula no mercado de derivativos (derivado de ativos), toda a soja do mundo não será suficiente para a entrega física por liquidação contratual, ou seja, essa soja não existe. Para não correrem o risco de uma intervenção judicial, as bolsas de commodities e derivativos suprimiram a cláusula que prevê entrega física de commodities. É nesse ponto que reside a financeirização da produção de commodities agropecuárias e de minérios nas bolsas.
A função dos mercados futuros e de derivativos deveria ser a de “fixar preço” para se prevenir do risco de uma quebra de safra, de crises políticas e econômicas, de crises climáticas e desastres naturais, entre outros fatores imprevisíveis, que podem provocar aumentos estratosféricos de preços ou baixas expressivas, prejudicando o custo de produção ou estourando com os fluxos de caixa, com isso gerando desemprego, falência de indústrias, de produtores e prestadores de serviços (hedge/proteção).

Desregulamentação do sistema financeiro
Ocorre que, com a desregulamentação do sistema financeiro, para reduzir ao mínimo a intervenção do Estado no mercado, esquivando-se, inclusive, da fiscalização e driblando o pagamento de impostos e tributos (e aqui estamos falando do mercado financeiro e não da produção), os instrumentos econômicos e contratuais desenvolvidos para os mercados futuros, os derivativos, estão sendo utilizados para outras finalidades. Embora devessem servir para proteger seus agentes contra as bruscas oscilações de preços, passaram a ser determinantes na formação de preços na ponta de produção, jogando a economia real no risco e na especulação da economia de mercado (finanças).

Dessa maneira, o preço futuro da soja na Bolsa de Chicago determina o valor à vista da soja colhida no campo, quando o processo deveria ser o contrário. Na prática, o preço da soja colhida hoje no campo, calculado seu custo de produção, somando armazenagem, tributos e transporte até o porto para exportação, é determinado pelo valor futuro das bolsas, quando a conta correta seria a partir do preço da soja de hoje, considerando a realidade local de produção. Sobre este preço é que se deveria calcular o preço futuro, estimando os riscos de instabilidade política e econômica, de desastres ambientais e conflitos trabalhistas, entre tantos outros fatores, complexos e imprevisíveis, que afetam as variáveis econômicas e socioambientais na atividade produtiva.

Então, o chamado risco sistêmico é a quebra de toda a cadeia imbricada de garantias reais, entre o dinheiro que circula migrando de um lado para outro virtualmente, pela quantidade e qualidade de produção. Se um banco empresta dinheiro para alguém, ele deve ter em contrapartida uma garantia que permita o empréstimo. É comum que os bancos troquem garantias entre si, pois o mesmo banco não pode ser garantidor de si mesmo. É nessa confusão de garantias, de quantidade e qualidade de produção que se formam as bolhas financeiras, as quais colocam em risco sistêmico as economias mundiais globalizadas pela tecnologia da informação.

A biodiversidade tem sua própria lógica
Façamos, agora, um exercício: o que acontecerá se esta prática ocorrer com nossas riquezas naturais — como as florestas, sua biodiversidade e água —, cuja dinâmica está no paradigma organicista, oposto ao paradigma mecanicista que acabo de ilustrar com essa contabilidade?
biodiversidade tem sua própria lógica, não sendo compatível com a produção em escala, sem com isso gerar altos impactos ambientais com a intervenção humana através da biotecnologia, da geoengenharia e da mecanização. É possível, porém, analisar o que ocorre com as commodities minerais, uma vez que o preço da energia está atrelado ao preço do barril de petróleo cotado nas bolsas de commodities.

Estamos gritando contra o fracking (fraturamento hidráulico) para extração de gás de xisto, primeiro, porque pode contaminar as águas subterrâneas e, segundo, porque também promoverá a militarização das áreas exploradas, já que, pelo controle do combustível fóssil, o Oriente Médio tornou-se um barril de pólvora com conflitos e guerras sangrentas. São projetos de morte que prevalecem na contabilidade do sistema financeiro. As finanças são engenhadas por seres humanos que o sustentam com dados estatísticos, com números e programas matemáticos. São dados calculados friamente, sem a percepção de que uma simples cifra sobre trilhões pode causar prejuízos consideráveis para milhares e milhares de pessoas, como apertar o gatilho de uma metralhadora giratória. Esse é o paradigma mecanicista, em cuja lógica se fundamentam o mercado de carbono e seus derivativos (REDD, REDD+, Pagamentos por Serviços Ambientais, Créditos de Efluentes, Créditos de Compensação etc.).

IHU On-Line – Em que aspectos sua compreensão de uma finança que seja ecológica e socialmente responsável se aproxima da teoria de Boutang, segundo a qual o gigantesco poder da finança deve ser posto a serviço de objetivos como a transição energética, da luta contra a poluição química de terras aráveis, e da garantia de uma renda decente para todos, com investimento maciço na saúde e preservação do meio ambiente?

Amyra El Khalili – Quando Boutang propõe a economia da polinização e outra finança possível, está, na verdade, defendendo o mesmo princípio da economia socioambiental, que foi compreendida por Ignacy Sachs como economia dos biomas. Sachs concluiu que são os povos das florestas e tradicionais os que têm realmente condições de manter a floresta em pé, protegendo e fiscalizando a partir de sua produção equilibrada e em harmonia com o ecossistema. Foi desta percepção e estudo que Sachs conceituou o “ecodesenvolvimento”, posteriormente traduzido para “desenvolvimento sustentável”, para se tornar “sustentabilidade” a que agora, ajustado ao modelo neoliberal, chamam de economia verde. Trata-se de um conceito confuso, que apenas repete a teoria do capitalismo verde com algumas adequações, inicialmente cunhado pelo acadêmico inglês John Elkington, com o clássico The green capitalists (Os Capitalistas Verdes, Editora Gonllaccz, 1989), assentado no tripé pessoas, planeta e lucro (Triple botton line).

No entanto, oposta à economia verde, a economia socioambiental agrega as propostas da economia solidária com a economia dos biomas a partir de núcleos formados em torno das bacias hidrográficas, já que historicamente a humanidade se agrupa em torno das águas, construindo cidades e se urbanizando. Uma cidade, comunidade ou grupo humano e demais seres vivos não sobrevivem sem água e não se desenvolvem economicamente sem energia.

A água não é substituível como a energia que pode ser produzida por diversas fontes renováveis, além das não renováveis. A água é um enigma da natureza a ser decifrado, pois pode ser renovável se cuidada e não renovável se degradada. A água está para a história da humanidade e do planeta como o ouro está para a história econômica globalizada, com seus fascínios, as ganâncias e conquistas de povos sobre povos. Na mística, a água e o ouro se encontram. Os movimentos da América Latina, como os campesinos/as, os povos indígenas e os povos tradicionais da Amazônia estão se mobilizando contra a mineração com o chamamento “Água sim, Ouro não”. Podemos beber água, mas não podemos comer ouro!

Na prática, a tese de Boutang pode ser implementada com a pulverização das finanças e com a cobrança e fiscalização sobre a “responsabilidade socioambiental do sistema financeiro”, fazendo com que os empréstimos exijam financiamento de projetos que não gerem impactos ambientais e não promovam a exclusão social, como expulsão de campesinos, povos indígenas e tradicionais de seus territórios e que não incentivem a criminalização da pobreza. Foi com esta perspectiva que a agenda na Rio+20 juntou meio ambiente com erradicação da pobreza para os Objetivos do Milênio.

Sistema financeiro e política
Quando o sistema financeiro se torna cúmplice de governos corruptos, viabiliza a lavagem de dinheiro, transfere recursos públicos para a iniciativa privada fazer o que é função do Estado em setores cuja função não é “lucrar”, como educação, saúde, segurança pública, previdência, saneamento básico. Quando o sistema financeiro protege o mercado ilícito de armas, drogas, prostituição, entre outros, a sociedade deve ter o poder de processá-los e impedir que essa economia subterrânea, que se mescla com a economia financeira, continue se propagando. A proposta do movimento pela auditoria cidadã, das redes e movimentos que questionam os investimentos de bancos multilaterais, do direito do consumidor, da dívida públicae tantos outros, podem fazer a transmutação das finanças e alcançar o que propõe Boutang, e o que estamos propondo há duas décadas, como ação proativa.

É entendendo como funciona este sistema financeiro e esclarecendo para a sociedade de forma didática com o tripé educação, informação e comunicação que promoveremos uma estratégia coletiva e efetiva para combater as mazelas do mercado financeiro com suas distorções e sua autofagia. A outra questão passa pela prestação de contas e auditorias dos recursos a fundo perdido, que são despejados em ONGs e Oscips (organizações sociais de interesse público), que também não escapam do paradigma mecanicista. Muitas ONGs tornaram-se braços governamentais e aparelho eleitoral subserviente de interesses político-partidários, valendo-se de argumentos sociais e ambientais para justificar a captação de recursos, quando não são elas próprias que recebem verbas das mesmas empresas que são responsáveis por degradação e desastres ambientais.

As Oscips passaram a ser um híbrido entre Estado e sociedade civil organizada, engessadas pela dependência de dinheiro público e sem condições de combater o sistema financeiro, que também financia campanhas políticas, além de não terem credibilidade para denunciar as arbitrariedades sociais e degradação ambiental. Em favor da Amazônia existem milhares deONGs e Oscips que sequer puseram os pés na região. Afirmam pretender defender esse bioma, pois é onde há maior interesse financeiro, diferentemente de regiões como o Cerrado e a Caatinga, onde poucos querem investir e onde há os projetos socioambientais que se autossustentam justamente pela carência de recursos. Eles devem ser criativos e fazer a economia prosperar nesses biomas, tão ricos em biodiversidade quanto a Mata Atlântica, o Pantanal e a Amazônia.

Desta forma, haverá recursos financeiros suficientes para investimentos em educação, saúde, proteção e preservação ambiental, segurança pública e principalmente para a transição da economia que vivemos para a economia que queremos. É fácil constatar, pelas cifras de desvios financeiros destinados ao que é necessário para investir em projetos socioambientais, significativamente mais baratos do que o dinheiro que vai para o ralo da corrupção. De fato, a economia é um todo e não está nem funciona fragmentada. Todos os sistemas e setores estão direta e indiretamente interligados pela globalização e pela tecnologia da informação. O que afeta a um afetará a todos em qualquer parte do mundo.

IHU On-Line – Na prática, o que tem impedido que as finanças sejam utilizadas para as finalidades mencionadas acima?

Amyra El Khalili – Para que as finanças sejam utilizadas para as finalidades mencionadas, o que está faltando é areestruturação do sistema financeiro com a sua regulamentação, uma política fiscal e tributária específica para este setor, que propicia a migração de fortunas virtuais. Os impostos são mais pesados para os pobres e mais baratos para os ricos, que sempre conseguem linhas de financiamento. A população está sendo financeirizada com cartões de crédito, limites no cheque especial, no crédito consignado, com a alta carga tributária, enquanto os capitalizados são financiados com empréstimos de longo prazo e baixas taxas de juros. A alta taxa Selic está financiando os títulos do tesouro direto, para sorte dos rentistas (que vivem de rentabilidade), conforme analisou o economista Ladislau Dowbor para IHU On-Line.

Há, portanto, várias ações a serem implementadas: a necessidade de uma política de fomento e de incentivo na produção, o financiamento da transição de uma produção degradadora para uma produção ambientalmente sustentável e inclusiva, a fiscalização e auditoria das contas públicas e privadas, principalmente de empresas cujas ações são negociadas nas bolsas de valores, a reforma tributária e fiscal, além de forte pressão da sociedade para fazer valer o código do consumidor. E, por fim, no que for ilícito, ilegal e imoral, a ação do Judiciário, pois não é possível ser tolerante com a corrupção e a lavagem de dinheiro. Temos que agir em conjunto com as instituições jurídicas, assessorando e estimulando. Não faltam razões, pode-se até lembrar que em mercados desregulamentados muitos contratos entre partes acabam parando na mesa do juiz e os magistrados não entendem de finanças nem de seus jargões — como as palavras-expressões em inglês grafadas nos contratos financeiros e mercantis, como commodities, spread, gap, swap etc.

IHU On-Line – Como a política deveria participar desse processo de transformação ou de uso das finanças para fins como a transição energética?

Amyra El Khalili – Para implantar a transição energética, é necessário repensar o modelo econômico. A maioria da população vive em cidades. O Brasil passou a ocupar a posição de sexta economia do mundo. Ironicamente, o IBGE divulgou dados assustadores sobre as favelas brasileiras. Segundo estes dados, certamente conservadores, o Brasil tem 6.329 áreas irregulares e precárias nas quais vivem 11.425.644 pessoas. Juntas, elas equivalem à população da Grécia, para que se tenha uma ideia da magnitude do desafio das cidades deste importante país no cenário latino-americano (FDUA n.61, por Edésio Fernandes & Betânia Alfonsin).

Energias renováveis
As cidades consomem energia de países, fazendo com que a política energética do Brasil esteja voltada à construção de mais hidrelétricas, além dos projetos de políticos insanos que pretendem ressuscitar a energia nuclear. A energia produzida por uma hidrelétrica na Amazônia gera impactos ambientais e sociais naquela região para abastecer o Sul e o Sudeste, que recolhem seus tributos na ponta distribuidora de energia, e não no local impactado na Amazônia.

Os diferentes setores de energia renovável concorrem em tributos, taxas e formação de preços com a produção de energia não renovável. Quando há um incentivo para a produção de energia renovável, como a eólica, solar, o biodiesel e o etanol, não há um planejamento para limitar essa produção, pois acaba também gerando mais impactos, como tem denunciado com conhecimento de causa e científico o professor Heitor Scalabrini Costa sobre a produção em escala deste tipo de energia que deveria, por coerência, ser equilibrado e harmônico de região para região, analisado caso a caso, em um pacote energético diversificado.

O fato de a energia ser renovável não significa que não cause impactos. É necessário, portanto, que o planejamento energético considere as demandas da região e da população que pode ser afetada com a construção de hidrelétricas, usinas nucleares, com a exploração de petróleo, gás natural, carvão, gás de xisto, minério radioativo ou mesmo com a construção de parques eólicos, solar fotovoltaica e monoculturas para a produção de etanol e biodiesel.

Transição energética
Precisamos desenvolver um modelo de transição energética com planejamento financeiro conjuntamente com atransição do modelo econômico, pois, do contrário, não haverá energia renovável ou não renovável que suporte a demanda de produção e resolva o problema socioambiental, que, consequentemente, provocam bruscas mudanças climáticas. É de fundamental importância manter a população campesina, indígena, tradicional e ribeirinha nos campos e nas florestas, bem como o povo do sertão no Nordeste, fazendo a migração oposta à dos centros urbanos para reverter o quadro desolador do crescimento das favelas, do desemprego e da violência urbana. Esse tem sido o desafio de séculos e até hoje não saímos deste quadro crítico.

Os políticos estão preocupados com eleições e seus mandatos. Os prazos para a implantação de uma política energética, socialmente justa e politicamente participativa e integrada não fecham com os prazos da política partidária. Em um evento para prefeitos e gestores públicos, argumentei que o político que propuser uma estratégia colaborativa com a comunidade para a gestão das águas com a transição energética ficará marcado como gestor público para o resto da vida, pois o mandato acaba, mas a gestão pública fica e sua militância será reconhecida pelo povo. Se agarrar essa bandeira, será também a sua razão de viver.
Quando o gestor público (político) constrói uma proposta com o coletivo da comunidade para uma agenda de transição econômica a partir do binômio água e energia, estará investindo em projeto consistente de longo prazo, com efeitos visíveis no curto prazo, que serão os da adesão e do apoio da comunidade. Há dinheiro para isso circulando no setor financeiro, e o setor de energia é o que mais acumulou nas últimas décadas. Auditem as contas dos bancos multilaterais e exijam que esses projetos sejam cumpridos com responsabilidade socioambiental, pois esse é o papel do sistema financeiro e para isso pagamos impostos e taxas. Basta analisar as nossas contas de luz, água e gás para saber onde foi parar o dinheiro.

IHU On-Line – Também concorda que deveria existir uma renda decente ou uma renda universal para todos? O que seria essa renda e de que modo ela seria provida para todos?

Amyra El Khalili – Em tese, deveria existir uma renda decente ou renda universal para todos. É o que garante a Constituição brasileira quando trata da “dignidade da pessoa humana” sem discriminação e diferenças. Se fizermos valer a Constituição, seja pelo direito da dignidade da pessoa humana, seja pelo direito de uso dos bens comuns (bens difusos: água, energia, biodiversidade, minério) das presentes e futuras gerações, não restam dúvidas que estaríamos garantindo a existência de uma renda decente e até mesmo uma renda universal, caso esse efeito seja transfronteiriço, como deve ser a gestão das águas, já que um rio atravessa fronteiras territoriais entre países. Se entendermos que esses dois pilares — a dignidade da pessoa humana e os bens comuns — compõem um conjunto indissociável para conquistarmos essas condições, então estaremos trabalhando para a transição da economia em que vivemos (globalizada, em fase neoliberal do capitalismo) para a economia que queremos (socialmente justa, politicamente participativa e integrada e ambientalmente sustentável).

Favelização
A favelização é resultado da degradação ambiental e da exclusão social. Tal fenômeno se multiplica justamente porque as pessoas saem do seu meio para inchar as cidades em busca de emprego e renda para sustentar suas famílias. Não podemos dissociar a pobreza do meio ambiente. Se buscarmos alternativas de geração de emprego e renda, fixando o ser humano no campo e impedindo a expulsão dos povos indígenas e tradicionais de seus territórios, teremos como fazer existir essa renda decente. É por isso que lutamos e nos mobilizamos na cultura de resistência, com a finalidade de evitar as guerras, os conflitos e a migração que forma massas de refugiados econômicos, do clima, das guerras, e da política genocida e etnocida praticada por governantes e corporações de seus países.
Se, de um lado, a tecnologia da informação faz migrar fortunas de um continente a outro, de outro, essa mesma tecnologia está fazendo com que possamos criar conexões de redes em que as florestas do mundo inteiro, os campos e os grupos de resistência se comuniquem e se mobilizem em prol da emancipação dos povos, reivindicando para que a utopia da renda decente e a renda universal para todos sejam realidade.

IHU On-Line – Alguns sugerem a necessidade de se estabelecer uma governança internacional para ajudar a solucionar problemas como os de ordem ambiental, realizar a transição energética e um novo modelo de finanças. Seria o caso? Como você vê essa proposta?

Amyra El Khalili – É o que chamam de governança ambiental. O conceito, porém, tem sido confundido com governança corporativa, como assistimos na Cop-19, quando o setor de energia não renovável (carvão, petróleo, nuclear, gás natural e gás de xisto) se uniu para propor a falsa solução do mercado de carbono, postergando soluções reais por mais um instrumento de financeirização da natureza, conforme denunciamos.

Então, a governança ambiental, que propunha o diálogo entre a iniciativa privada, o governo e a sociedade civil organizada tem sido dragada pela governança corporativa, essa mesma que fundiu a Bayer com a Monsanto. Os grandes crescem cada vez mais e a sociedade civil organizada, que deveria ser representada por lideranças comprometidas, são cooptadas pela economia verde para defender propostas no paradigma mecanicista. Mais uma vez, o sistema financeiro fala alto e atropela nossas ações comprando cabeças.
Identificar e confrontar essa tendência se faz necessário para sabermos quem é quem e com quem estamos lidando. Eles têm a habilidade de absorver nossos argumentos para empurrar contratos financeiros e mercantis duvidosos e perigosos.
Governança ambiental
Se resgatarmos o conceito de governança ambiental, na perspectiva crítica analisada por BoutangIgnacy Sachs, Edgar Morin, Vandana Shiva e tantos outros pensadores, como também os que debatem em nossas redes, na IHU On-Line e demais fóruns que estão se espalhando por toda a América Latino-Caribenha, poderemos implementar uma política de governança ambiental para a realização de uma transição energética para uma outra finança possível e emergencialmente necessária.

Se utilizarmos os mesmos sistemas que fortaleceram esse modelo degradador e desumano, é evidente que podemos reprogramá-lo para uma nova consciência. Isso não depende de dinheiro; depende da sensibilização de corações e mentes. Depende, especialmente, de um código de ética e moral que seja universal e, nesse sentido, a contribuição do Papa Francisco com a encíclica ecológica Laudato Si’, como um princípio norteador, veio em boa hora!

IHU On-Line – Como a esquerda tem atuado e entendido a discussão sobre o papel das finanças e do capital no mundo contemporâneo? A esquerda tem contribuído para pensar e discutir essas questões? Como?

Amyra El Khalili – A esquerda ainda está presa aos conceitos da política pelo poder. Perdemos a referência do que seja esquerda e direita. Assistimos, em todos os governos, a mesma retórica em relação às questões ambientais. Fica complicado, como ativistas, nos posicionar com críticas e propostas sem sermos rotulados pró ou contra esse ou aquele governo. O ativismo pelos direitos humanos e o ambiental deveria ser isento e não se envolver em disputas político-partidárias, pois o povo e o ambiente devem estar acima dos interesses por subserviência política ou por solidariedade corporativista entre pares.

Lamentavelmente, as coisas não transitam por essa via. A esquerda não quer discutir finanças, pois essa discussão passa por prestação de contas, auditoria, transparência, meandros delicados e polêmicos, como abordamos nessa entrevista. Os movimentos e grupos fortemente ligados aos partidos políticos não sabem separar o joio do trigo. Não entendem de finanças e não querem debater, sem o viés ideológico, com quem entende. Preferem ler enviesado e bater em palavras-chave, como commodities, bolsas, mercados, juros, sem compreender a diferença de quem está propondo a repetição esverdeada do modelo neoliberal de quem, mesmo usando as expressões de finanças, o está criticando, inclusive demolindo argumentos frouxos, como é o caso das nossas frentes multidisciplinares. Fui economista pioneira, desde 1997, a destrinchar ponto por ponto cada item do mercado de carbono, e quando a coisa ficou exposta me vi sozinha batendo de frente com ambientalistas e colegas rendidos para o neoliberalismo.

Já tivemos entreveros com alguns por não entenderem que estamos criticando, militando e combatendo ao lado destes grupos e movimentos os inimigos comuns, porém usamos argumentos técnicos, operacionais e jurídicos e não os ideológicos, que usam à exaustão e repetidamente, caindo muitas vezes na armadilha dos que estão condenando. Foi o que aconteceu com a esquerda quando chegou ao poder. Não estava preparada para enfrentar o sistema financeiro; não se aparelhou e não se cercou de gente de confiança para saber o que estava fazendo e que contratos estavam assinando. Aqui faço uma ressalva: estou me referindo aos da esquerda que são sérios e comprometidos e não àqueles que sabem perfeitamente o que fizeram quando se corromperam no caminho.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Amyra El Khalili – Estive palestrando no Encontro Nacional de Engenharia e Desenvolvimento Social – Eneds, naUFSC, e tive a oportunidade de desabafar depois que uma manifestação de jovens mulheres abriu nossa mesa de debates. Nesse desabafo, eu fiz a crítica aos movimentos sociais e de esquerda que preferiram não ouvir e não saber sobre o tema desta entrevista. Disse que o grupo “Dossiê ACRE” me convidou para palestrar para esclarecer o que, afinal, era o mercado de carbono, e suas consequências. Tive, da plenária, a atenção e a paciência dos povos indígenas e tradicionais, bem como dos acadêmicos e das lideranças representadas naquele evento em uma única noite o que não tive das esquerdas nestas duas décadas que consolidaram “a mercantilização e financeirização da natureza”.

Sinto que as transformações estão em curso, mesmo que pareça estarmos diante de um precipício escuro e sem fim. Nesse aspecto, a encíclica ecológica, publicada pelo Papa FranciscoLaudato Si’, nos convida à reflexão de que um mundo sem ética, moral e espiritualidade não se sustenta e que os jovens são os que mais sofrem e serão os mais impactados no futuro. O Eneds nos deu energia renovadora por conhecer jovens engenheiros e engenheiras dispostos a praticar uma engenharia humana, no paradigma organicista, questionando e criticando o paradigma mecanicista que originou o sistema financeiro.

Se fomos nós, os humanos, que criamos o problema, seremos nós, os humanos, os que deveremos buscar por soluções, mas não pelo mesmo sistema e no mesmo grau de consciência que o criou, como dizia Albert Einstein. A comunidade acadêmica precisa chamar a si a sua responsabilidade socioambiental, buscando formar cidadãos e cidadãs e não apenas tecnocratas e burocratas para o mercado de trabalho, sem personalidade e projetos de vida.

Papa Francisco expressa esse compromisso em Laudato Si’ e nos cobra esse posicionamento por nossos filhos, netos e futuras gerações. Como mulher de origem palestina, luto para que nossos jovens não sejam imolados no altar do terrorismo, das guerras, da miséria, das drogas, dos crimes e da prostituição. Uma economia só pode ser justa se for humanitariamente digna e ambientalmente sustentável e somente será possível se for lastreada no tripé legitimidade, credibilidade e ética.

Referências

BRESSANE, Carmen Cecilia. Entrevista: Brasileiro já nasce devendo em torno de R$ 27 mil da dívida pública. Revista IHU On Line. Edição 492. Ano XVI. Financeirização, Crise Sistêmica e Políticas Públicas. 05-09-2016. Por Ricardo Machado | Edição Vitor Necchi.

BOUTANG, Yann Moulier. Entrevista: O poder das finanças e as estratégias para romper a crise sistêmica. Revista IHU On Line. Edição 492. Ano XVI. Financeirização, Crise Sistêmica e Políticas Públicas. 05-09-2016. Por Márcia Junges | Edição João Vitor Santos | Tradução Vanise Dresch.

______. Uma outra finança é possível e a economia da polinização. Palestra proferida no IV Colóquio Internacional IHU – Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica.Por Márcia Junges. Publicado em 13-09-2016. Acessado em: 1. out. 2016.

COSTA, Heitor ScalabriniA propaganda enganosa como estratégia dos “negócios do vento”. Publicado em 29 set, 2016. Acesso em: 1. out. 2016.

COSTA, Heitor Scalabrini. Debate energético enviesado. Publicado em 6 ago. 2016. Acesso em: 1. out. 2016.

DOWBOR, Ladislau. Entrevista: Cercamento da democracia e fim do capitalismo democrático
. Revista IHU On Line. Edição 492. Ano XVI. Financeirização, Crise Sistêmica e Políticas Públicas. 05-09-2016. Por João Vitor Santos.